sábado, 12 de novembro de 2011

Consciência Estética na Arte Contemporânea



Introdução

A necessidade eufórica de se definir arte é, certamente, sintomática. A atual produção artística se depara no interior de dimensões que não se encontravam reservadas à arte, e a exigência de uma elaboração teórica paralela a fim de reconhecer tais objetos enquanto obras de arte caracteriza de forma decisiva a experiência estética contemporânea. Além de estar naturalmente condenada a acompanhar e assimilar o movimento da produção artística, a estética se encontra, hoje, ainda determinada por uma segunda tarefa: legitimar o estatuto artístico das obras periféricas ao conceito de arte.
Entretanto, afirmações segundo as quais a arte ultrapassou as fronteiras de toda determinação possível são, ao contrário do seu conteúdo supostamente definitivo e universal, determinadas por uma mentalidade que se espanta demasiadamente com o presente e se torna incapaz de analisá-lo com clareza.
A superação de estruturas e ideais artísticos, cuja expressividade se encontra sempre restrita a um contexto, caracteriza toda a história da arte, e creio que o que hoje ocorre na arte não é radicalmente diferente do que sempre ocorreu. Talvez um aumento quantitativo desse movimento, decorrente das novidades técnicas do nosso século, do maior número de artistas concorrendo ao mesmo espaço, ou da aceleração do ritmo criativo sustentado pelos modos de produção do capitalismo, seja algo razoavelmente defensável. Mas, compreender a arte contemporânea como um estágio derradeiro da história que, ultrapassando todas as determinações e expectativas, escapa a toda definição, é um exagero característico de quem analisa sua própria época.
No domínio da teoria, creio que chegamos, realmente, num ponto limite: afirma-se, contando, ademais, com um grau elevado de concordância, que tudo pode ser arte. Mais do que isso é impossível afirmar. Mas a produção da arte acompanhou essa transposição ao infinito no nível teórico do conceito de arte? Certamente que não. Há um caminho desconhecido, cuja limitação da imaginação humana jamais permitirá que seja espiado antes de se tornar concreto, e que deve estar contido, de forma virtual, numa teoria estética.
Nesse sentido, acredito que o único modo de, reservando um lugar para a imprevisibilidade da arte contemporânea, explicar a realidade da arte se dá por meio da relação entre o sujeito e a obra de arte. Investigar o modo pelo qual nos relacionamos com o objeto artístico, independentemente da sua constituição física, social e semântica, é a melhor maneira de pensarmos o conceito de arte, revelando aquilo que lhe é particular da sua experiência, sem, no entanto, restringir o seu espaço criativo.


Desenvolvimento

Como se define um conceito (se se quer bem realizar alguma tarefa é essencial que se pense na constituição mesma do seu realizar)? Tradicionalmente, encontrando propriedades definitórias, isto é, identificando certo número de propriedades essenciais que um objeto deve necessariamente possuir. Posteriormente, podemos ainda considerar um método ligeiramente distinto, segundo o qual, a partir de um conjunto dado de objetos, buscar que características estão presentes em cada um desses objetos e que, simultaneamente, não se encontra em nenhum objeto que não pertença ao conjunto. Indo adiante, podemos ainda dispensar completamente a procura por propriedades e eleger o próprio conjunto como a definição do conceito, ou seja, a mera aplicação do conceito e o conjunto de objetos aos quais, neste uso, constituem sua referência, consiste precisamente na sua definição.
Não creio que tenha alguma relevância avaliar cada um dos métodos de definição segundo um juízo de valor, cada um tem uma função específica e, de acordo com suas vantagens e desvantagens características, se tornam útil em alguns casos e inúteis em outros. Para as ciências naturais, cujo objeto é dado e a relação pela qual se apodera deste objeto é puramente descritiva, identificar propriedades definitórias, por mais epistemologicamente questionável e metafisicamente antiquado que pareça, é o modo mais eficaz de compreender e organizar o domínio da realidade que lhe é próprio. No entanto, já para objetos artificiais e, ademais, constantemente em modificação, a tentativa de encontrar tais propriedades é completamente inútil, até prejudicial, já que ao invés de compreender a natureza flexível de seu objeto o imobiliza dentro de seus limites semânticos.
O conceito de arte, portanto, só pode ser definido através da mera exposição do seu conjunto, já que encontrar propriedades que lhe sejam próprias se mostrou definitivamente impossível em pleno século XXI. O privilégio disso é claro: o conceito de arte pode ser modificado à velocidade em que ela ganha novos produtos. Sem uma propriedade através da qual se avalia previamente a inclusão de um determinado objeto ao domínio do conceito de arte, por princípio, qualquer objeto tem o direito de ser arte. Ademais, a arbitrariedade desse processo de definição se apresenta inteiramente homomórfico ao próprio processo criativo da arte.
Semanticamente, é o método mais seguro e objetivo, satisfaz exigências epistemológicas razoavelmente rigorosas já que a capacidade de uma sentença ser verdadeira ou falsa, e o conjunto formado por este dado, é empiricamente detectável. Mas que informação relevante uma definição assim nos transmite? Na medida em que o conceito de arte deve, ao menos em potência, ser tão grande quanto à própria noção problemática de ser, pois a máxima “tudo pode ser arte” consolidou-se de tal forma na arte contemporânea que nenhuma teoria estética tem mais o direito de contrariá-la, o conceito de arte perde todo seu conteúdo determinado. A lei da relação inversamente proporcional entre o conteúdo de um conceito e a extensão de seu domínio nos obriga a repensar a importância de definir arte dessa maneira.
Se a definição de arte aqui se encerra, isto é, se o limite da possibilidade de definição do conceito de arte consiste na mera exibição de seu domínio, que aponta para a totalidade do ser, ela é completamente inútil. Há, no entanto, no próprio desenvolvimento da definição, algo ainda mais esclarecedor. O critério, mesmo empírico, que estabelecemos anteriormente para definir o conceito de arte, segundo o qual “tudo pode ser arte”, esconde uma idéia extremamente importante que se encontra precisamente no termo “pode”. Me parece que a contingência expressa pelo verbo “poder” caracteriza de forma mais significativa o conceito de arte que o próprio “tudo”, ao qual primeiramente direcionamos a atenção.
O fato de que a consideração de um determinado objeto enquanto obra de arte depende de algo exterior, isto é, que as suas determinações intrínsecas não são suficientes para qualificá-lo segundo seu caráter artístico, reorienta a investigação acerca do conceito de arte para um domínio inteiramente diferente.
Usualmente se coloca a possibilidade de, deslocando um objeto qualquer do seu contexto originário, no qual nossa percepção se encontra inteiramente preenchida pelas determinações utilitárias com que nos relacionamos com a realidade no exercício normal da vida, convertê-lo numa obra de arte. Isso a experiência mesmo nos comprova, o século XX já explorou exaustivamente essa possibilidade. Mas será o contrário também verdadeiro? Será uma “autêntica” obra de arte vulnerável à desautorização de seu valor artístico? Bem, o legado histórico de um objeto é decisivo para seu reconhecimento enquanto obra de arte, de modo que retirada sua história seu caráter artístico também se encontra ameaçado. Analogamente ao radical esquecimento, a reprovação do contexto histórico no qual as obras nazistas foram produzidas, e sua conseqüente carga semântica negativa, provocam também uma grande resistência na exposição e apreciação dessas obras. Embora os dados factuais expressem uma tendência contrária, na qual objetos ordinários, pelo mero fato de conter um percurso histórico, são naturalmente aceitos como obra de arte, independentemente de sua função originária e seu valor estético, a possibilidade, embora remota, de uma obra de arte perder completamente seu reconhecimento artístico existe.
Basta, portanto, que se percam as referências que regem o modo pelo qual devemos apreender um determinado objeto para seu valor artístico se tornar suspenso. Pelo menos até que alguém nos diga que se trata de uma obra de arte. A afirmação “isto é arte!”, de certo modo tautológica, até mesmo imperativa, estabelece uma espécie de manual de instruções que orienta e determina a percepção. Sua verbalização é, no entanto, irrelevante, o mesmo conteúdo aparece também na dimensão meramente prática quando, por exemplo, usamos um objeto com fins decorativos, quando produzimos ou nos apoderamos de objetos que julgamos ostentar certa beleza, ou, obviamente, quando levamos um objeto para dentro de um museu ou uma galeria. Todo o domínio de indivíduos envolvidos no mundo da arte contribui no reconhecimento do que é arte, isto é, na emissão da afirmação, verbalmente ou não, “isto é arte!”. Desde o domínio da produção artística à ordem da recepção, com todos os seus complexos campos intermediários, possuem igual legitimidade nesse juízo.
Mas em que consiste exatamente essas “instruções”? Essa é a única questão que realmente interessa para a definição de arte, isto é, investigar qual é o modo pelo qual apreendemos um objeto quando tal recepção se encontra determinada pela estrutura espectador/obra de arte. Sem a ontologia subjetiva que Kant dispunha para analisar o juízo de gosto, a determinação da relação entre o sujeito e a obra de arte se torna certamente menos objetivável, mas sinto-me plenamente seguro quanto à determinação de um aspecto: ela encontra-se na ordem da percepção.
A fim de caracterizarmos o domínio da percepção e a forma da experiência que temos com a arte, que consiste no núcleo da experiência estética, podemos recorrer ao que já foi, de certo modo, consolidado como o sentido geral de “experiência estética”: a ausência de um conceito de fim, a suspensão das determinações funcionais e utilitárias, a desconsideração do conteúdo informativo e exclusivamente racional, o caráter contemplativo, o distanciamento perante a existência do objeto, a apreensão enquanto fim em si mesmo, a integral imersão na realidade própria da obra, etc.
Por um lado, a arte contemporânea tenta, assim como grande parte da literatura acerca da arte, contrariar essa “pureza” estética, que acredito estar na essência da experiência com a arte. A própria noção de arte conceitual, cujo aparecimento ocupa um lugar central na arte contemporânea, parece contradizer em sua própria formulação a idéia de que a forma, a aparência, e, conseqüentemente, o domínio da percepção, seja prioridade na arte. A atribuição de significado a um objeto, sua recém-adquirida carga semântica, o que reivindica do espectador um papel intelectual ativo, superaria, nesse sentido, a ordem perceptiva pelo qual apreendemos a obra de arte.
Não creio, no entanto, que esta tese seja eficaz em acomodar e ordenar uma parte significativa da experiência que temos com a arte. Sua validade se restringe a uma certo domínio dos produtos artísticos, aqueles que oferecem uma clara abertura interpretativa. Alem disso, o que penso mais revelar a fragilidade desta teoria, é o fato de se referir a aspectos da experiência cuja importância para a arte é mínima, identifica uma fragmento da experiência, que de fato está ali, mas que não diz respeito à particularidade da relação espectador/obra de arte.
Identificar um significado numa obra de arte resume-se a um esforço de leitura que, embora legitimo, poderia ter como ponto de partida qualquer outro objeto. Um texto de caráter estritamente filosófico, sem nenhum interesse estético, poderia originar e construir pensamentos cujo conteúdo seja análogo, por exemplo, ao venerado mictório de Duchamp. Obviamente, o texto e a “escultura” não expressam este pensamento da mesma maneira. Cada um, segundo sua natureza, seu meio, sua linguagem impõe suas particularidades. O texto filosófico privilegia a clareza, a profundidade, a fundamentação, etc. A linguagem pela qual a obra de Duchamp se concretiza não dispõe de nenhuma dessas características, em oposição, a subjectividade permitida pelo caráter interpretativo dessa relação e a crueza e o impacto da imediaticidade da experiência estética constituem algumas vantagens exclusivas da linguagem artística.
Obviamente, para fins específicos, como a tentativa de comunicar algo cujo conteúdo se encontra censurado dentro de um sistema político repressor, para explorar aspectos da subjetividade humana que escapa ao discurso científico, ou transmitir uma mensagem cujo choque e agressividade sejam uma exigência intrínseca ao próprio conteúdo, é perfeitamente possível se defender a superioridade da arte como meio de informação e conhecimento. No entanto, acho difícil negar que um texto livre de exigências estéticas tenha maior capacidade de comunicar um conteúdo de forma íntegra, rigorosa e objetiva. Seria, portanto, absurdo supor que o valor da arte esteja no conteúdo que expressa, no conceito ao qual foi destinado a representar. Contrariamente, penso que é pelo modo como ela expressa algo, independentemente de que conteúdo seja, que se fundamenta o valor da obra de arte. O modo como um objeto expressa algo, o seu meio, a sua forma, nos obriga a reorientar o discurso estético para sua própria linguagem, e, mais uma vez, recuperamos a caráter perceptivo da experiência com a arte.
No interior dessa tese, a arte contemporânea ganha uma nova imagem. A arte conceitual perde, é verdade, parte de seu interesse artístico. Isso não significa, no entanto, um manifesto contra a importância dessas obras, mas uma mera relocalização de seu valor. De fato, sempre achei que o mictório de Duchamp seja mais filosofia da arte do que propriamente obras de arte, isto é, que seu valor se encontre menos no domínio percepção do que como meio de comunicação de uma teoria.
A apropriação de objetos cujo valor artístico era antes inexistente, ou imperceptível, possui, portanto, por um lado, (1) um valor filosófico e teórico de redefinição e ampliação do conceito de arte, que acredito ser, ademais, superior a alguns textos filosóficos cuja obscuridade e hermeticidade lhe conferem mais interesse poético que teórico; por outro lado, (2) um valor propriamente artístico, originário da percepção do objeto. Nesse sentido, o expressionismo abstrato, e a arte moderna em geral, encontram maior refúgio no interior dessa teoria, na medida em que sua atividade, auto-reflexiva, consiste em explorar e reinventar uma realidade própria que revela a particularidade da linguagem pictórica.
No entanto, creio que a arte contemporânea em sua totalidade (não me refiro, obviamente, à totalidade das obras, mas a multiplicidade de movimentos e formas de expressão) encontra um espaço acolhedor no interior desta idéia. O caráter híbrido das obras, constantemente contrariando o isolamento das linguagens artísticas, a inclusão democrática da atividade de sentidos desvalorizados (o olfacto e o tacto), a livre apropriação de novos meios técnicos, o que fornece à arte uma materialidade cada vez mais vasta, são algumas novidades importantíssimas da arte contemporânea que habitam o domínio da percepção.
O mictório de Duchamp, no entanto, se encontra ameaçado, seu valor estético é, na verdade, questionável e vulnerável. De fato, penso que, para o domínio da arte, sua obra tem uma importância prioritariamente indireta. Na medida em que desempenha um papel fundamental na história da arte, abre um espaço inteiramente novo e rico para a criação artística.
No entanto, as colagens de Picasso, por exemplo, que exercem uma análoga apropriação de objetos (tickets e recortes de jornais, igualmente desprezados dentro das suas funções originárias), conseguem compô-las de tal modo que um interesse estético também determine parte da experiência com a obra. Obviamente, a extensão teórica das colagens de Picasso não atinge, como a obra de Duchamp, questões acerca da originalidade e da autenticidade, cujo questionamento se mostrou fundamental para a arte contemporânea. Mas isso consiste, como tentei expor, num outra categoria de valor.
Questões acerca dos limites do conceito de arte já não motivam decisivamente a produção artística contemporânea, a possibilidade de tudo ser arte já consolidou-se e reafirmar isso não nutri mais interesse artístico. Mas os problemas teóricos acerca da legalização irrestrita do ato de apropriar-se de um objeto só puderam ser colocas e explorar a fundo pelo contexto fornecido com a arte contemporânea. Embora já estivessem presentes na arte desde muito antes, a apropriação parece continuar a provocar questões relevantes para a arte.
A apropriação surge no centro da discussão acerca da definição de arte, já que consiste justamente no ato de transitar objetos pela fronteiras do conceito de arte. Na Pop Art, no entanto, a apropriação incorpora um significado mais amplo: dois conceitos até então fundamentais à concepção de arte se encontram ameaçados. Em primeiro lugar, o conceito de autoria deixa de determinar a produção artística: não é mais necessária destreza técnica na fabricação da obra e nem mesmo que ele seja feito pelo artista. A produção serial e automática que rege a indústria, e o mundo contemporâneo em geral, pode ser também reivindicada no fazer artístico. Em segundo lugar, o conceito de autenticidade é abandonado. Num mundo em que a existência serial das coisas sufocou toda singularidade e individualidade, não faz mais sentido a arte insistir em valorizar e originalidade.
Podemos destacar ainda uma terceira possibilidade de problemática levantada pela apropriação na arte contemporânea. Esta, talvez, ainda mais fundamental, tanto por ter sua origem na arte contemporânea, quanto por levantar questões teóricas que dizem respeito ao domínio da percepção. Refiro-me ao conceito de objeto como resultado da atividade artística. A arte contemporânea levou essa questão às ultimas conseqüências: dispensando completamente a fabricação da obra, os meros planos, a idéia, passou a ocupar um “espaço” no museu.
Mas não precisamos ir tão longe por agora. O modo como o novo realismo, com artistas como, por exemplo, Raymond Hains, Jean Tinguely e Arman, desempenha sua atividade artística nos permite colocar a questão por outra perspectiva: não por abandonar a produção do objeto, mas ampliar a noção dos limites deste. Penso que o grande mérito do novo realismo se encontra precisamente na capacidade de ampliar a experiência estética para além do contato direto com a obra.
O ato de levar a realidade para o domínio da arte, transfigurando a banalidade do modo como lidamos com os objetos no mundo numa experiência estética, faz surgir um movimento de direção contrária, que vai da arte para a realidade: a relação que temos com realidade também é alterada pela arte. A obra de arte não mais se encerra na unidade de sua superfície, mas, ultrapassando seus próprios limites físicos, se estende para todo o mundo quotidiano. Uma parte da realidade é introduzida na arte, mas, simultaneamente, a arte também se inscreve na realidade. É nesse sentido que o novo realismo nos permite pensar na noção de extensão da obra de arte, a noção de objeto como encerrando em si mesmo o resultado do fazer artístico.
Isso tudo determina o domínio da percepção. A obra mesma permanece intacta, presa nos limites de sua materialidade. É unicamente pela modificação do modo pelo qual nos relacionamos com os objetos que permite a obra de arte estender sua existência para além de sua materialidade.


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