quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A exigência representacional na fotografia



A arte não deve se submeter a nada de natural. Ela é, pelo menos potencialmente, melhor que a natureza, e qualquer exigência que a determine dentro de uma função representacional só tende a corrompê-la. É claro que é igualmente prejudicial exigir dela que não incorpore nada de natural. Talvez o problema mais fundamental seja, antes, impor-lhe uma função, ou quaisquer expectativas prévias. Mas se arriscasse um palpite do espaço onde a arte tende a ter maior sucesso, afirmaria, certamente, um lugar longe da natureza.
O realismo de Lucian Freud garante seu valor não na adequação à realidade, mas na estranha maneira pela qual sua pintura se afasta dela. Seus personagens encontram-se deslocados de seu cotidiano, apresentam-se quase sempre nus ou com poses que nunca fariam por si mesmos. A pose e a encenação, de acordo com minha percepção, são aspectos valiosos nas suas pinturas: elas nos fornecem uma posição privilegiada construção subjetiva dos personagens. Paralelamente, suas pinceladas, que favorecem um relevo e uma textura própria da pintura, nos lembram sempre de uma materialidade outra, não real, mas da linguagem artística. Os diálogos de Woody Allen, ou Domingos de Oliveira, na sua paranóica prolixidade ou na sua confusa ausência de linearidade nos diálogos, consegue revelar de seus personagens muito mais do que saberíamos se agissem como seres humanos normais. Esses homens que encontramos na nossa vida são, na sua maioria, entediantes e pobres demais para a arte.
Há expectativas distintas dentro do que podemos entender por naturalismo. Na pintura, a exigência do parecer natural incide, com maior força, no caráter propriamente plástico da imagem. É a textura, o exagero de detalhes, a ausência de contornos, as justas proporções, dentre outras características que são, em primeira instancia, requeridas na pintura. O universo da linguagem fotográfica recebeu tudo isso gratuitamente. Se a arte se submetesse a uma função representacional a fotografia teria substituído o lugar da pintura, ao invés de criar um novo espaço criativo, na qual uma linguagem inteiramente nova se desenvolve.
O fato das características por meio das quais a pintura se torna realista estar presente de forma dada na fotografia reorientou o foco das exigências representacionais. O caráter plástico da fotografia era inerentemente realista, e dispensava qualquer esforço ou técnica. Nesse sentido, o peso que restringia a criação na pintura foi definitivamente dissolvido. Não que a fotografia tenha reivindicado esse papel (desde que a fotografia assumiu seu papel artístico seus objetivos já eram inteiramente outros), nem que os pintores presentes no desenvolvimento da primeiras máquinas fotográficas ainda almejavam uma técnica capaz de imitar a realidade (a muito tempo a boa pintura já havia percebido que está via não chegava a lugar nenhum), mas para o senso comum, e para a sua recepção da pintura, foi determinante essa nova perspectiva. Pelo contrário, a técnica (e o experimentalismo presente em toda linguagem artística incipiente) era exigida justamente para se afastar de uma mera imitação da realidade.
A dimensão de exigências que uma visão representacional da arte impõe à fotografia, portanto, ocupa um outro espaço, não mais na plasticidade da imagem, como ocorria com a pintura, mas se caracteriza pela ideia da espontaneidade. Já que o aspecto visual da realidade já se encontra dada na fotografia, o ideal representacional transfere-se para o próximo espaço ainda indeterminado: a situação (disposição, estado das coisas) no interior da fotografia.
Talvez esse dever imposto à fotografia seja, em alguma medida, ampliado pelo fato da fotografia ser a forma de arte que se encontra inserida de forma mais intensa no exercício prático e cotidiano da vida. A espontaneidade caracteriza-se pela radicalização do ideal de representação da vida, de modo que exige-se que, a fim da situação presente na fotografia apresentar uma maior “naturalidade”, a própria presença do fotógrafo e da câmera fotográfica desapareça. Nesse sentido, o fotografo deve camuflar-se, anular-se, e sua função reconfigura-se no mero registro da situação ali presente.
De um ponto de vista mais geral o problema se reformula como a atribuição de valor aos próprios conceitos mediante os quais se compreende a arte. Qualquer que seja o conceito que usamos para falarmos e, consequentemente, compreendermos a arte deve ser absolutamente neutro. Toda valoração possível incide unicamente no particular, na existência de uma obra na sua singularidade (me perdoem a redundância). Quando deixamos de falar das obras singulares e passamos a falar dos conceitos que dela se abstrai toda a carga valorativa deve ser abandonada, isto é, quando retiramos do modo singular pelo qual uma obra de arte concretiza uma ideia o puro conceito, e passamos a dele falar, o juízo de valor perde sua referencia.
O mero fato da situação apresentada na fotografia ser espontânea não nos permite, portanto, emitir nenhum juízo de valor. É, na verdade, o modo como esta espontaneidade encontra sua realidade na obra que se coloca como objeto de um juízo valorativo. Atribuir um valor à espontaneidade em si mesmo e julgar a arte por meio desse critério significa interromper o próprio contato com a obra. Nesse sentido, um critério previamente estabelecido passa a ocupar o lugar da experiência estética, e qualquer juízo de valor que se fundamente nisso é completamente vazio.