segunda-feira, 28 de maio de 2012

Franco D'Andrea






Ofereço este post ao meu amigo José Ramos.

    Acho maravilhoso quando, por meio de pesquisas orientadas por motivos completamente diversos, ocorre uma espécie intersecção inesperada entre certos dados resultantes dessas pesquisas. Formulo, inicialmente, de maneira geral porque isso ocorre de inúmeras maneiras diferentes. No presente caso, o pianista Franco D'Andrea, que conheci nominalmente somente recentemente, já se encontrava em minha discoteca digital a tempos. Primeiramente, em quatro álbuns de uma banda italiana de Jazz/Fusion chamada Perigeo. Posteriormente, num maravilhoso álbum em homenagem ao Cole Poter em que D'Andrea toca sozinho com Lee Konitz. Mas só recentemente, quando conheci um álbum ao vivo de uma apresentação na Casa Del Jazz em Roma que pude ligar, e resignificar, todas as precedentes experiências.

Deixo quatro álbuns do D'Andrea pra vocês.


1996 - Inside Cole Porter

2007 - Ao vivo na Casa Del Jazz

1972 - Azimut  (Perigeo)

1978 - Modern Art Trio    (Modern Art Trio)

Baixem primeiro o "Inside Cole Poter"!




sábado, 14 de janeiro de 2012

O Carácter Mediato da Experiência Música




            Introdução

            A idéia de que a experiência estética exige uma formação, uma espécie de educação, apesar de oferecer uma grande abertura para uma estética fechada e unívoca, não pode ser descartada pelo mero perigo que representa. Faz parte da nossa expêriencia com a arte um processo de desenvolvimento do juizo estético. E isso ocorre tanto numa relação com o todo da experiência com a arte, quanto no domínio específico de uma obra determinada: a percepção formada no primeiro contacto directo com uma obra de arte é, na maioria das vezes, frágil e incerto, de modo que frequentemente somos obrigados a rever e substiuir nosso juízos iniciais por outros cuja durabilidade, ademais, tende a aumentar. A compreensão parcial e limitada da obra de arte, relativa à capacidade do espectador de recebê-la, é algo, penso eu, perceptível por autoreferência: a exigência de revisitar inúmeras vezes obras de arte é parte intrínseca desse processo de conhecimento. Nesse sentido, a experiência estética não é imediata, pressupõe uma formação a qual desejo justamente investigar no presente artigo.
Obviamente, a educação estética, a consciência do conteúdo sensível do objecto artístico, a disposição de um amplo acervo de outras obras que permita a comparação e mesmo um grau determinado de conhecimentos meramente técnicos, são elementos já apontados como fundamentais para a formação de um autêntico crítico; assim como de qualquer espectador atento e preocupado, que exerce, ademais, com igual legitimidade seu juizo de gosto. No entanto, com relação às formas artísticas que envolvem o tempo, a necessidade de alguma espécie de conhecimento prévio para a percepção da obra de arte é acentuada.
No cinema, a exigência dessa condição se torna evidente. O fracasso comercial dos filmes “difíceis de assistir” é presente. A primazia de uma preocupacão interna com a linguagem cinematográfica  em relação aos elementos que o tornam agradável e inteligível é uma atitude que provavelmente condena um filme à exclusão das salas de cinemas populares e lucrativas. Manter o espectador duas horas dentro da sala de cinema, sem que este, a partir de si mesmo, desempenhe um esforço, só foi possível mediante o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica que pretende explicitamente reter a atenção espectador ao ponto deste se relacionar de forma quase inconsciente com o filme. Actualmente, o sucesso de um filme está intimamente ligado à consolidação dessa linguagem que, excluindo quase por completo o esforço interpretativo do espectador para compreender o sentido da imagem cinematográfica, tornou-se uma forma expressiva quase universal.
Assim compreende-se também a predominância absoluta do cinema narrativo. O cinema comercial, cuja principal condição de produção seja, entre outros factores, a exigência da viabilidade financeira, se apoia em estruturas que já mostraram agradar e entreter o público sem riscos. Uma estrutura narrativa é fundamental para esse propósito, ela é a forma mais inteligível de oferecer uma compreensão da unidade de imagens que se estendem no tempo. A fim de facilitar o papel do espectador na percepção dessa unidade, de forma que não exija esforço de sua parte, formulou-se inúmeras estratégias: a transparência da narrativa, de modo que o espectador se confunda com os próprios personagens e que permita um envolvimento afetivo. a permanência de um ritmo, não havendo tempo para se perceber fora da realidade criada pelo filme, uma dinâmica que produza uma tensão e que culmina nos momentos finais do filme, para que mantenha um nível de curiosidade e ansiedade até seu termino, etc. A presença de trilhas sonoras  também são indispensáveis, ela garante a carga emotiva do filme e nela se fundamenta grande parte da tensão e do alívio sentidos no filme.
A música, talvez, seja prejudicada em menor medida. Os recursos técnicos e financeiros que condionam sua criação são incomparavelmente menores que no cinema, podendo oferecer ao artista uma maior independência criativa. Não quero, porém, desviar a discussão para o que de fato ocorre nos meios artísticos actuais, até porque não poderia fazer mais do que levantar meras hipóteses. A questão que realmente me interessa aqui é a relação entre o tempo, ao qual a música depende, e a experiência estética. Isto é, me importa pensar de que maneira a experiência da música é determinada pelo fato de sua linguagem, o meio através do qual se torna real, se estruturar no tempo.


O modo de ser temporal da música

O tempo é condição existencial da música, é ele o lócus onde a música encontra sua materialidade. E isso tem uma necessária consequência: na medida em que a música se estrutura no tempo ela toma sua própria forma. O tempo se caracteriza pelo deslocamento da actualidade, que é permanentemente transferida de um ponto (lugar) para outro. O devir temporal se expressa nessa restricão do espaço actual, que só oferece lugar para uma ínfima fracção do existente, obrigando a transitoriedade da realidade. A música incorpora uma estrutura idêntica: uma existência fragmentada.
A música se encontra infinitamente dividida em partes cuja existência é absolutamente independente uma das outras. Cada instante é determinado por uma exigência essencial de que seu antecessor seja completamente aniquilado para que possa vir a ser. É uma determinação existencial da música que se revele aos poucos, pois o devir temporal só oferece lugar para uma fracção dela, sendo a morte de uma dessas partes a própria condição de possibilidade de sua integral existência. Somente deixando de existir pode um fragmento da música dar lugar ao seu sucessor, até que o último fragmento da música tenha uma vida igualmente fugaz. É assim, condenada a fragmentaçao e provisoriedade, que a música se revela.
fragmentação, sua auto-anulação. A exibição progressiva de seus fragmentos, alternativamente relevados na actualidade, é a única forma de se mostrar integralmente.
Por conseguinte, a totalidade da música não é dada, ela não é parte da experiência, não é um objecto entre outros na realidade. A música, para aparecer em sua totalidade, depende de um um processo activo do espectador, de um trabalho de reconstituição que tem como ponto de partida o estado fragmentário tal qual lhe é dado na experiência. A totalidade da música, portanto, só é possível subjectivamente, ela é o resultado de um processo construtivo subjectivo, cujo sucesso, ademais, não é espontâneo. É justamente essa necessária intervenção activa do sujeito na constituição da música, em uma unidade que percorre uma extensão temporal determinada, que vai legitimar a necessidade de uma investigação acerca de um suposto conhecimento necessário na sua percepção.
Eis, portanto, a estrutura existencial da música na sua relação com o tempo e a forma de percepção que ela impõe ao sujeito, isto é, se se exige que à perceba em sua totalidade. Antes de prosseguirmos, portanto, devemos retroceder e perguntar pela verdade dessa exigência. Deve-se colocar a questão acerca da necessidade de se apreender a música enquanto uma totalidade: a experiência musical realmente exige a apreensão de sua totalidade? A resposta é não, obviamente, como para qualquer interrogação que se pretenda normatizar uma maneira universal de se relacionar com a arte.
No entanto, o percurso histórico da música desenvolveu e consolidou estruturas que se apoiavam no tempo. As formas musicais que se estabeleceram, e que determinaram também a forma de sua compreensão e recepção, confiavam seu sentido ao tempo. Elas dependiam do tempo porque seu conteúdo só podia ser revelado no interior de um duração temporal; incompreensíveis, portanto, se o modo de percepção estiver confinado no instante. Segundo o modo como música se desenvolveu, cujo conteúdo se dispunha numa forma extensa no tempo, foi imposto uma concepção de música em que cada instante de seu aparecer deve seu pleno sentido à relação que mantém com os outros instantes, ou seja, o sentido da música se encontra prioritariamente na unidade formada por esse conjunto de instantes alternativamente revelados numa extensão temporal. Em suma, cada instante no qual a música aparece revela uma parte material de algo cuja essência a transcende.


A noção de conhecimento interno

Podemos recuperar agora a questão com a qual iniciamos o texto. Considerando o modo de ser da música em relação ao tempo e o fato de seu desenvolvimento, enquanto linguagem artística, ter criado um modo de expressão que depende dessa extensão temporal, nos posicionamos mais próximos de oferecer uma resposta consistente acerca da necessidade e da particularidade de um aprendizado que condiciona a percepção da música.
Embora não possa fundamentar de forma pormenorizada minha posição, não acredito que tenha um papel fundamental na percepção qualquer espécie de conhecimento técnico e teórico da música. A música foi, certamente, umas das formas artísticas que mais permitiu o surgimento de estudos, tratados e teorias. O valor desse conhecimento alcançou um nível quase objectivo, sua complexidade, eficiência e o consequente grau de aceitação determinou decisivamente a existência da música.
Foi desenvolvida uma escrita própria que, de forma bastante precisa, consegue descrever a própria realidade da obra musical (o que não foi possível em nenhuma outra forma artística). Desenvolveu-se um saber prático com relação à manipulação dos instrumentos, à regência e à interpretação que fortaleceu-se de tal forma que tornar-se um bom músico sem um estudo técnico, ainda hoje, é quase impossível. Além disso, conhecimentos de ordem teórica também se tornaram bastante complexos e presentes, inúmeros estudos se ocuparam com a teorização e descrição das leis harmónicas, rítmicas e melódicas, assim como um eficiente arcabouço teórico que se construiu para lidar unicamente com o domínio da composição. Por último, podemos ainda considerar os tratados estéticos e os estudos históricos que interpretam e organizam as manifestações musicais em todo seu percurso. Enfim, há um gigantesco e complexo conjunto de conhecimentos técnicos e teóricos que envolvem a produção e a recepção da música que, sem dúvida, não pode ser desprezado.
De fato, tudo isso nos oferece uma maneira diferenciada, talvez mais rica, de se compreender a música. No entanto, a percepção musical ocorre paralelamente a qualquer exigência de ordem estritamente racional, e não acredito, portanto, que uma formação musical seja tão relevante para se relacionar com a música. Pode-se considerar, talvez, uma relação indirecta desse conjunto de conhecimentos com a formação de uma percepção mais elevada: ou por pressupor que quem se interesse por conhecer técnicas e teorias musicais já tenha um nível de experiência elevado, ou, contrariamente, pelo fato de justamente conduzi-lo à experiência. De qualquer modo, o contacto directo com a obra musical é o único fundamento da formação da percepção, e todo o aprendizado realmente necessário também deve estar contida nesse domínio, a saber, na experiência.
O contacto com a obra de arte é insubstituível, ele é o único fundamento possível da formação da percepção e do juízo estético, assim como de qualquer teoria estética posteriormente elaborada. O conhecimento que procuramos analisar, portanto, não pode conter, em sua essência, nada fora dessa relação individual entre o sujeito e a música.
Deve-se considerar ainda o catáter dinâmico apresentado pela noção de aprendizado. “Aprender” indica um movimento cujo fim ao qual se dirige não se encontra presente, obviamente, no estágio inicial. Mas podemos compreender esse movimento em dois sentido: tanto num sentido mais amplo, para o qual a unidade mínima significativa é o todo da experiência com a arte; quanto num sentido interno a uma obra singular. No primeiro sentido se compreende o processo constante de reavaliação do juízo estético, dado pelo acúmulo progressivo de experiência. Novos sentidos e valores florecem das constantes re-configurações que um novo dado provoca ao penetrar na teoria global com que lidamos com a arte. O movimento do aprendizado que procuro analisar, no entanto, que é particular das linguagens artísticas que envolvem o tempo, como a música, ocorre no interior da relação com uma obra singular. Se refere, especificamente, à exigência de revisitarmos uma mesma obra até nos sentirmos “prontos” para emitirmos qualquer juizo.
Nesse sentido, devemos, a fim de legitimar a presença de um aprendizado na formação da percepção musical, apresentar um fim ao qual nos conduzimos que não seja a experiência em si mesma, já que esta consiste justamente no seu ponto de partida. A particularidade desse conhecimento se encontra no fato, aparentemente contraditório, de que sem poder reivindicar nada além da experiência como fundamento de sua formação, não pode, no entanto, ser ela mesma.
Como havíamos mencionado anteriormente, o modo como a música foi concebida se apoiava no tempo para expor seu conteúdo, e que, na medida em que sua totalidade só era possível subjectivamente, exige-se do sujeito um modo de recepção activo cuja tarefa consiste em encontrar uma unidade presente nos fragmentos através dos quais a música se revela, que se encontram, em seu estado bruto, existencialmente isolados. Esse processo consiste numa função positiva do espectador na medida em que se faz necessário extrair da experiência algo que não está dado nela. O aprendizado necessário à percepção da música consiste, portanto, no processo subjectivo de, a partir do contacto directo com a obra, construir e ordenar o estado fragmentário dado na experiência, e o conhecimento adquirido desse processo é compreensão a música enquanto uma totalidade.          


O conceito de Forma

            A particularidade do conhecimento ao qual me refiro consiste, portanto, na compreensão da música em sua totalidade, e isto significa, mais especificamente, na percepção de sua forma. A noção de forma desempenha, portanto, um papel central e exige uma investigação mais detalhada.
            Usualmente, entende-se o conceito de forma pela sua oposição histórica à matéria ou ao conteúdo. Nesse sentido, a forma habitaria um domínio da realidade particular, um mundo inteligível, supra-sensível ou meramente abstracto, em contraposição à realidade sensível e concreta. Ela se formaria, ou se deixaria desvendar, a partir de um esforço intelectual de abstracção, ou seja, pela exclusão daquilo que é meramente singular e que individualiza o objecto. Através do processo de abstracção alcançaríamos o conhecimento de uma espécie de objecto insaturado e nos transportaríamos assim para a ordem da generalidade. Tenha esse ambiente uma carga ontológica ou não, o fato é que ele se encontra separado da realidade sensível, e não ocuparia, portanto, no mesmo espaço que a experiência acontece. A forma, tomada nessa acepção, está intimamente ligada à linguagem, ela coincide, em certo sentido, com a própria noção de conceito (termo geral, predicado). Conhecer a forma, ademais, é, em suma, produzir conhecimento, acessar o nível estrutural do mundo, no qual, higienizado de suas determinações sensíveis e singulares, torna-se possível visualizar a ordem pura da realidade.
            O que nesse texto quero designar por forma, no entanto, é algo um pouco diferente. Certamente, envolve um processo subjectivo, um esforço de organizar e articular a experiência e até mesmo a produção de conhecimento. No entanto, é necessário destacar dois pontos divergentes: (1) a presença de uma actividade racional e consciente não é necessária, (2) a forma não se encontra separada da expêriencia sensível, ela constitui-se na própria materialidade da realidade.
            Não quero excluir toda a complexidade que envolve a experiência estética. Acredito que grande parte de sua força se fundamenta, contrariamente, na relação meramente subjectiva e privada que temos com a obra de arte. O conjunto de vivências, que é particular do sujeito, e isso inclui aspectos culturais, psicológicos e até biológicos, determina uma parte importante da relação que temos com a arte, especialmente a via afetivca com a qual nos conectamos com a obra. No entanto, no presente artigo, meu interesse incidi especificamente na noção de forma.
Por mais questionável que seja a prioridade do conhecimento da forma na constituição da percepção, uma coisa me parece correcta: seu poder explicativo é significativo. O critério de verdade que adopto no texto é muito simples: uma teoria é verdadeira na medida em que consegue explicar um certo domínio da realidade, ou, dito de uma maneira menos comprometedora, sua verdade depende de sua capacidade de se apoderar (incorporar, apropriar) e ordenar (organizar, articular) determinada circunscrição da experiência. A teoria segundo a qual o conhecimento da forma atua como mediador da percepção musical consegue organizar a experiência que temos com a música de modo esclarecedor. E isso justifica-se por alguns motivo: primeiramente, por estar presente no fundamento da concepção de música dominante e na imposição de um modo de recepção característico; em segundo lugar, por estruturar a relação da existência temporal da música com o papel ativo do espectador: em terceiro lugar, pelo poder explicativo que essa relação ofecere acerca do comportamento da música no mercado; por último, obviamente, por fornecer uma concepção mais precisa do caráter processual que envolve a percepção musical.
            Análoga à relação que temos com a pintura, na qual se exige uma distância adequada a fim de incluirmos a totalidade da obra em nosso campo visual, também a música exige um modo de percepção adequado. Vista unicamente de uma proximidade inferior à qual a totalidade das dimensões físicas da pintura seja compreendida de uma só vez, se contraria uma condição fundamental para sua percepção, já que perderíamos o vislumbre dos aspectos particulares da pintura enquanto parte de uma unidade. Vista de perto, portanto, unicamente através de seus elementos particulares tomados isoladamente a pintura perde seu sentido. Obviamente, a percepção de uma pintura também envolve uma extensão temporal: para percorrermos todos os pormenores de determinadas obras pode-se exigir muito tempo, além do facto ser relevante nos deslocarmos frente à obra a fim de a vermos através de ângulos e distâncias diferentes.
Deve-se distinguir aqui o conceito de totalidade e integralidade. Para contemplarmos uma pintura em sua integralidade, uma visualização exaustiva de cada mínimo detalhe da obra, requer-se obviamente muito tempo. Mas isso é completamente desnecessário para a experiência estética. Compreender a pintura em sua totalidade, contrariamente, significa compreender o espaço de sua existência como uma unidade, não se imergir e se isolar nos pormenores mas percebê-los como parte de uma composição que o engloba. Na ausência da relação que cada parte da pintura mantém com o todo,  sua forma permanece invisível e a obra de arte incompreendida.
No entanto, a natureza temporal da música sustenta uma diferença fundamental com relação à pintura. A compreensão de sua forma exige uma actividade subjectiva que é insignificante na pintura, já que a mera distância apropriada garante as condições para apreendê-la em sua totalidade. Certamente a linguagem pictórica impõe outros tipos de problemas com relação à sua percepção, mas a sua forma não se esconde na fragmentação temporária à qual a música se encontra condenada.
A música escolheu, ou foi designada, a percorrer um caminho que se encaminhou para um modo de expressão que se dava através da forma, e, consequentemente, impôs um modo de percepção que depende de sua compreensão. Obviamente, podemos nos concentrar naquilo que é exclusivamente imediato e material na música, podemos nos admirar com o timbre, com a corporeidade do som, com o carácter táctil da música, etc., mas esse é um modo de percepção que a música não nos solicita.
As formas musicais que tendiam para esse outro pólo possível da percepção musical deveram sua idealização e concretização às experimentações eletro-acústicas no final da década de 40. Foi quando, pela primeira vez, o conteúdo imediatoda música, aquilo que se revela no instante, superou a relevância da forma. Surge aqui um novo modo de se fazer música e seus correlatos: uma nova concepção de música e uma uma nova forma de recepção. Mas isso é um problema que requer uma discussão própria. Cabe aqui apenas pronunciar sua existência e as profundas mudanças que desencadeou na música do século XX.
A compreensão da música a partir dos conceitos de melodia, harmonia e ritmo indica esses aspectos formais aos quais a produção musical se centralizou. A idéia de melodia perde todo seu sentido fora do tempo: na ausência da relação que cada nota, que se revelam alternativamente do tempo, mantém com a totalidade de notas numa determinada extensão temporal perde-se a noção de melodia. Se cada nota não for compreendida no interior da relação que ela mantém com as demais notas que compõe a melodia, se nos encerrarmos no que é meramente instantâneo a melodia desaparece. Só há melodia se houver uma actividade subjectiva que condensa todo o estado fragmentário das notas numa compreensão na qual cada nota encontra-se dentro de uma relação com o todo formado pelas notas que, juntas, compõem uma sequencia melódica.
O mesmo vale para a noção de ritmo e harmonia. A noção de ritmo caracteriza-se justamente pelas posições relativas em que os sons se encontram depositados no tempo. A duração dos intervalos entre os sons, sua separação temporal, é a condição de possibilidade do ritmo. Isso implica, igualmente, na exigência de uma actividade subjectiva que viabilize a compreensão de uma forma. Embora a ideia de harmonia não tenha uma relação directa com o tempo, contendo características que independem de uma estrutura temporal, há a presença de um movimento que determina grande parte de seu sentido. A relação dos graus tonais e a dinâmica de tensão e repouso se estruturam também no tempo.


O conceito de forma como explicação do potencial comercial da música

Quando se coloca a prioridade, na própria condição de produção da obra de arte, o seu valor comercial, o público ao qual se destina a obra passa a existir virtualmente nela: ele acaba por conduzir e determinar de forma decisiva a sua criação. Obviamente, leis inteiramente distintas podem surgir a partir desse pensamento, em função do tipo de público ao qual se considera e do grau de investimento que a produção da obra requer. Mas se nos transportarmos para um domínio mais geral da relação entre a criação da obra de arte e as imposições que surgem na ordem da receptividade, podemos, certamente, destacar um critério como prioridade: a inteligibilidade. É essencial, para uma recepção segura e imediata, que a obra seja fácil de se compreender, excluindo ao máximo, no interior da relação obra/espectador, o papel activo do sujeito.
O grau de inteligibilidade da música está essencialmente relacionado à sua forma, convertendo-se, portanto, no horizonte que orienta toda atitude comercial com relação à música. Busca-se uma música cuja forma possa ser compreendida pelo espectador já no primeiro contacto com a obra, de forma que exclua ao máximo o tempo e o esforço necessário para se percorrer esse processo de compreensão. A plenitude desse potencial comercial indicaria o caso ideal em que a mera presença do sujeito no alcançe auditívo da música, independentemente de sua atenção e vontade, deixa nele registrado sua forma. É o maior grau possível de passividade e imediaticidade da compreensão da forma, eliminado dessa relação o papel ativo do sujeito, que visa a produção da música de massa.
  A necessidade do esforço de direcionar e sustentar a atenção, de manter-se num estado de concentração e de reescutar várias vezes uma mesma música antes de penetrar na sua intimidade é comercialmente inviável. Não há espaço, dentro das exigências impostas pelo mercado, que é estruturada a partir das imposições do próprio público, uma música que exiga do receptor um trabalho activo e deliberado para compreender sua forma.
Michael Jackson e sua gravadora levaram esta idéia às últimas consequências, desenvolvendo uma fórmula através da qual se produza, de forma quase serial, músicas comercialmente eficazes. As estruturas essenciais dessa forma apareceram progressivamente ao longo de toda a história e, aos poucos, pelo seu alto grau de inteligibilidade, se consolidaram e penetraram no gosto comum. Michael Jackson detectou, explorou e desenvolveu suas potencialidades. Dentro do monótono processo da produção musical de massa houve poucas mudanças, de modo que permanece presente até hoje uma estrutura extremamente semelhante.
Uma dessas características pode ser grosseiramente apresentada deste modo: “introdução, parte A, talvez parte B, refrão, solo, refrão, conclusão”, isto é, uma estrutura na qual uma curta passagem de impacto, alternada por pequenas passagens meramente ornamentais, seja reapresentada até a exaustão. A estrutura subjectiva humana, sua capacidade da atenção, assimilação e memória, guiam esta fórmula. A música deve ter uma extensão relativa à capacidade humana de memorizá-la num primeiro contacto, isto é, não pode ter um número de informações que ultrapassam o poder de assimilação e memorização imediatas. A extensão da música, portanto, deve ter como fundamento de determinação a capacidade de memorização do homem. Ademais, deve-se chamar a atenção aqui para o fato dessa memorização ser considerada no seu estado distraído, isto é, sem envolver deliberação e esforço do sujeito.
Além do limite da duração, mostra-se recomendável que o núcleo na música seja repetido de forma sistemática: tanto pela facilidade de memorizar a música, já que no interior do primeiro contacto com a totalidade de sua extensão temporal esse núcleo é reapresentado inúmeras vezes; quanto pelo facto dessa estrutura conter em si uma espécie de orientação para auxiliar o espectador a filtrar as informações “principais” apresentados na música. Eis o surgimento da noção de refrão, que é a formalização desse processo de repetição do que merece ser lembrado e decorado pelo espectador.
Os próprios meios de gravação e distribuição sistematizam essa tendência. O formato dos “singles”, os mini LP's responsáveis pela sintetização do “melhor” da produção de uma determinada banda, na medida em que viabilizava um produto de baixo custo capaz de encabeçar a divulgação, determinou o domínio da criação e da produção música no século XX. Houve, portanto, uma exigência sistemática de que as músicas não poderiam exceder este tempo, já que a extensão temporal de cada um dos lados eram de aproximadamente quatro minutos. Desse modo, consolidou-se uma forma de composição musical na qual o conteúdo tinha que ser exposto em poucos minutos, e, reflexivamente, uma concepção de música e uma forma de recepção foi estabelecida. Esse padrão da extensão temporal da música se enraizou tão fortemente na concepção de música que mesmo hoje, depois de perpassarmos por inúmeros meios de distribuição distintos (a fita K7, o CD e o mp3), permanece uma disposição residual de apressadamente expor o conteúdo da música em poucos minutos.
No entanto, mesmo nos anos sessenta e setenta, durante os quais o LP consistia no principal meio de distribuição e divulgação, havia maneiras de contornar e superar essa restrição temporal imposta pela ordem do mercado. Os álbuns conceituais surgiram como uma forma de adaptação (superação sem confronto) a essas exigências. Trata-se de produções musicais cuja unidade mínima significativa é o todo do álbum, apesar que conter divisões internas em faixas relativamente independentes. Dessa forma, os Beatles e os Pink Flyod conseguiram satisfazer todas as exigências comerciais sem, no entanto, ceder às limitações temporais da música. Nos álbuns conceituais, cada música pode ser compreendida com uma unidade em si mesma, capazes, portanto, de se comportarem como “singles”; simultaneamente, no entanto, devem seu pleno sentido a um desenvolvimento que percorre toda a extensão do álbum, na unidade formada por todas as músicas. Há uma continuidade ou fluxo que ultrapassa os limites das faixas tomadas individualmente, de modo que, apesar de cada faixa conter um limite temporal curto, compreendidas nas suas inter-relações o álbum ganha novas potencialidade de expressão.
Outro carácter formal importante de se destacar é a presença de um contorno nítido entre a melodia e o acompanhamento. Enquanto a melodia flutua num espaço de destaque na música o acompanhamento recebe a mera tarefa de torná-la agradável e atraente. Esta característica é particularmente reveladora por estar profundamente enraizada na maneira com que compreendemos a música. Ela se consolidou tão fortemente que pensar a música segundo esta estrutura se tornou completamente intuitivo. A consequente passividade com que se recebe esta estrutura, o que dificulta sua mera identificação, é a própria marca de seu absoluto sucesso.
Além desta radical oposição entre estes dois pólos, melodia e acompanhamento, deve-se notar também a forma hierárquica com que compreendemos a relação entre eles. O valor atribuído à melodia superou de tal forma o valor conferido ao acompanhamento que se tornou o próprio fundamento da utilização do conceito de identidade. Isto é, o uso do conceito de identidade, quando falamos de músicas, tem como referência primeira a melodia. Sintomaticamente, se tornou completamente natural, fato que o uso da linguagem ordinária revela, afirmarmos a identidade de duas músicas justificando-se unicamente na igualdade de suas melodias.
A radicalidade dessa forma dá origem a idéia de que a voz possui uma prioridade em relação aos demais instrumentos, cuja tarefa se restringe a meramente sustentá-la. O fato da voz usualmente ser designada a desempenhar o papel da melodia, supostamente recebe uma consequente prioridade em relação aos demais instrumentos. A primazia da voz ganhou tanta força que se tornou mesmo um fator cultural valorizarmos mais os cantores do que os demais instrumentistas. Apesar de aparentemente insignificante, isso tem consequencias claras na organização do mundo da música: na tentativa de reinvidar o reconhecimento que lhe é devido, alguém que desempanha um papel de destaque no interior do grupo, se vê obrigado a ocupar a função do cantor. A expressão de uma liderança dentro do grupo se dá sobretudo através do desempenho vocal (consequencias negativas podem ser imaginadas). Ademais, os próprios conceitos desenvolvidos para organizar e categorizar as músicas revelam essa predominância formal: distinguimos música instrumental de músicas cantadas, como se a voz não fosse um mero instrumento.
Um outro aspecto formal que me parece importante apontar é a tendência, cada vez mais atendida, da aceleração do ritmo e da supressão do silêncio. No seu estágio mais radical, a violência da velocidade e o aniquilamento do silêncio se converte numa estética própria, uma estética do preenchimento e da agressão. Com distorções que prolongam o som irrestritamente, sobreposições de inúmeras camadas sonoras e sucessões de sons cujo intervalo tende a zero, o silêncio perde seu lugar. Esse exagero no preenchimento do espaço sonoro parece se referir a uma tentativa de conferir a cada fragmento da música uma capacidade intrínseca de obter e conservar a atenção do espectador. O silêncio é, na música cuja forma pretende satisfazer as demandas comerciais, a nota esquecida e rejeitada.
Não há uma justificação concludente que explique a eleição destas formas musicais como potências comerciais e não outras. Há, de fato, um carácter didáctico e um grau de acessibilidade dessas formas que está directamente relacionado à sua inteligibilidade, que é uma característica intrínseca que justifica em grande parte a sua utilização. Mas tudo poderia ter ocorrido de forma diferente, a música poderia ter seguido um caminho completamente distinto, elegendo outras formas que possibilitam uma igual facilidade de compreensão; ou, radicalizando as possibilidades contrafactuais, poderia ter ocorrido da história da música ter privilegiado o conteúdo do instante, e, nesse sentido, ter predominado uma concepção de música na qual a percepção da forma fosse secundária ou até dispensável.
A melhor explicação que se pode conceber se encontra meramente na psicologia humana: a tendência de permanecer com aquilo que já se conhece. Quanto mais músicas são criadas no interior de uma determinada forma, quanto mais ela é reproduzida e reaparece em outras músicas, mais natural se torna sua recepção e mais garantido será o seu sucesso. Com uma produção musical que insista e permaneça explorando determinadas formas, seguida da constituição de uma tradição que se funde nelas, qualquer forma musical poderia vir a ser sistematicamente reproduzida a fim de garantir a viabilidade comercial de sua produção.
O processo de compreensão de duas músicas, ou um conjunto de músicas, que contenha determinadas semelhanças formais permite uma espécie de atalho: o fato de já se ter conhecido uma forma presente numa música já “digerida” facilita a assimilação da experiência de todas as músicas que compartilham da mesma forma. Parte do potencial comercial da música reside na possibilidade de encurtar o caminho de compreensão da música intansiando formas já aceitas e assimiladas pelo público. A intimidade com uma forma musical facilita a apreciação de todas as músicas que instanciam uma estrutura semelhante, já que de fato “parte” da música já é conhecida. Na medida em que a música a se conhecer possui semelhanças formais com músicas já conhecidas, todo o processo da recepção salta etapas, eliminando seu caráter ativo e deliberado.


Resistência às formas

Grande parte da produção musical que se dirige directamente ao mercado poder ser esclarecida por meio da teoria segundo a qual formas musicais que se consolidaram na história e que prezam a inteligibilidade determinam sua criação. Se imaginarmos o domínio no qual essas formas se encontram instanciadas, considerando a produção musical do século XX como um tudo, certamente emergirá uma porcentagem significativa. Seja pela pressão directa imposta pelo mercado, seja pela simples dificuldade de se superar as formas que, se fortalecendo durante a história, orientam e determinam nossa compreensão de música, a grande parte da produção musical se encontra no interior das formas mencionadas anteriormente.
A investigação das formas que escolhi destacar encontra sua razão na sua força explicativa em relação à música comercial. No todo da produção musical destinada ao mercado podemos verificar uma razão significativa dessas formas. No entanto, acredito ser inteiramente falsa a idéia de que a ordem produtiva imposta pelo mercado interrompe todas as possibilidades da criação, e que, dentro do sistema de produção que visa o mercado, não há espaço para música de qualidade. As limitações impostas pelo mercado determinam toda a história da arte, e advém, primeiramente, das necessidades práticas do próprio artista, afinal ele requer as condições básicas de sobrevivências, além de outras mais, que são igualmente determinantes. Reivindicar um caso ideal no qual o artista se encontra completamente livre para criar é utópico, e também desnecessário. É perfeitamente possivel criar arte de qualidade sob qualquer pressão formal, esta pode vir a ser, ademais, a própria inspiração da criação.
No entanto, também aquilo que escapa às determinações formais padrões ganha uma nova forma de compreensão. Compreendida como uma tentativa de construção de uma linguagem que goze de uma relativa autonomia para se expressar através de formas novas e inabitadas, a arte de vanguarda exige a construção de novas formas de compreensão para dar conta da sua recepção. A ausência de referências anteriores capazes de fornecer uma forma previamente concebida através da qual a percepção se apoia obriga o espectador a penetrar mais fundo na experiência da obra para compreendê-la, de modo que todo o processo compreensão e recepção se vê obrigado a começar do zero. Não basta escutá-la uma vez, as bases formais disponíveis, a partir das quais se apropria e acomoda a experiência, não fornece nenhum lugar seguro para receber as vanguardas.
      O confronto da arte que se pretende vanguardista com as formas consolidadas e desgastadas dentro das quais se esgotaram as possibilidades expressivas caracteriza todas as linguagens artísticas. Tanto na música erudita, quanto na música popular, surgem movimentos e estilos, além, obviamente, de trabalhos independentes, que criam e exploram formas particulares de expressão. O Post-Rock apresenta um caso particularmente significativo. Com relação ao modo como apresentei o modo de compreensão da música comercial, ele ganha uma singular carga explicativa.
Se arriscássemos uma descrição das formas estéticas desenvolvidas pelas bandas de Post-Rock poderíamos recorrer precisamente aos valores opostos das formas destacas anteriormente: (1) a ausência de uma linha melódica precisa e independente, de forma que raramente possamos identificar papéis exactos segundo os conceitos de melodia e acompanhamento; (2) uma relação nivelada da voz em relação aos outros instrumentos, alguns álbuns a parte conferida à voz aparece meramente como efeitos sonoros ou ruídos; (3) o crescente ritmo com que a música tendia e a pressa em apresentar logo seu conteúdo é substituído por uma progressão lenta do tema, um desenvolvimento gradual de ideias que se mostram, ademais, extremamente simples; (4) liberam a extensão das músicas para durações variadas (20, 30 minutos); (5) apresentam uma dinâmica que oferece um lugar de destaque para o silêncio e a ausência de melodia. O Post-Rock pode ser explicado no interior desse confronto directo com essas exigências formais impostas pelo mercado, sua simetria antagônica se torna um exemplo esclarecedor para a presente discussão.


Conclusão

A necessidade e a particularidade de uma aprendizagem na qual se dá a formação do espectador se justifica, portanto, na actividade subjectiva necessária na constituição e compreensão da forma da música. Perceber essa forma significa, simplesmente, condensar a existência fragmentada da música enquanto uma unidade que permeia e ordena o devir desses instantes distribuídos no tempo. O conhecimento que procurei expor não se encontra, portanto, fora da própria música, ele é o resultado de um processo que se origina e tem sua finalidade no interior do contacto com ela. Nenhum elemento que não pertença à materialidade da música poderia ser um conhecimento decisivo para sua percepção. Aquilo que se coloca como necessário para a recepção da música não pode transcender o modo (meio) pelo qual ela toma sua existência, a saber, sua matéria sonora disposta no tempo.
Aprende-se a perceber uma música conhecendo sua forma, e conhece-se sua forma escutando-a. A obviedade dessa afirmação não se opõe à sua importância. A valorização da experiência, do contato direto com a obra de arte, é incontornável. Escutar, ademais, pressupõe atenção, ou melhor, uma atenção deliberada, o que exige um esforço (quase um sacrifício) cuja força motora deve se originar do próprio homem, num desejo sincero de conhecer e desvendar o universo da música. A atenção é a única, mas também essencial, condição para se perceber a música. É justamente a deliberação e o sacrifício que acompanham a atenção que a produção da música comercial pretende eliminar.
Apesar da carga aparentemente negativa acerca do desenvolvimento de uma forma que privilegia a inteligibilidade, não pretendo estabelecer nenhuma implicação com relação ao seu valor. O juízo de valor se refere unicamente ao que é singular. A experiência mesma nos orienta a afastar conclusões nessa direcção, já que de fato encontramos inúmeras obras respeitáveis dentro das características formais apresentadas anteriormente. Penso que, no entanto, implicações em estruturas probabilísticas sejam relativamente esclarecedoras: quanto mais restrições for imposta pelo mercado, menor será a possibilidade de gerar boas músicas, ou, quanto mais a criação artística estiver limitada por uma forma particular, menor será o domínio de indeterminação disponível para a criação, e, portanto, será menos provável que surja músicas de qualidade.
No entanto, acredito que a principal conclusão que deve-se extrair daqui vai num sentido diferente, se refere à tarefa criadora do músico revolucionário: perceber formas musicais, principalmente aquelas que se consolidaram com tal força que se tornaram imperceptíveis pela naturalidade com que lidamos com elas, e superá-las, de modo que o ato de criação se encontre completamente livre para percorrer qualquer via. Essa é uma tarefa interna da música, se refere à particularidade do seu modo de expressão: compreender, explorar e modificar essas formas consiste na própria constituição da linguagem musical.



domingo, 1 de janeiro de 2012

Roger Bunn - Piece Of Mind 1970


     
       Gosto desse álbum porque ostenta de forma muito clara o caráter lúdico da musica, inclusive do ponto de vista do próprio artista. Toda a extensão do álbum, em suas radicais variações, parece tratar-se de uma grande brincadeira, a musica é levada adiante com muita leveza e naturalidade. Não é nada impressionante, mas acho uma delicia escutar essa álbum...

Informacoes:

Download:

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Wizzard - Wizzard Brew 1973


        Havia escutado pela primeira vez esse álbum anos atrás, mas hoje, indo dormir, perdi completamente o sono com ele, e não pude ir dormir antes de vir posta-lo! Fui inteiramente absorvido pela energia do álbum. Trata-se de um álbum de uma integridade rara, mantém um nível e um ritmo praticamente insustentáveis, alem de explorar estilos diversos com plena autonomia e liberdade: sozinho faria uma festa fantástica!



  1. "You Can Dance Your Rock 'N' Roll" – 4:37
  2. "Meet Me At The Jailhouse" – 13:33
  3. "Jolly Cup Of Tea" – 2:13
  4. "Buffalo Station/Get On Down To Memphis" – 7:37
  5. "Gotta Crush (About You)" – 3:44
  6. "Wear A Fast Gun" – 9:20

2006 Bonus tracks

  1. "Ball Park Incident" (A) - 3:42
  2. "The Carlsberg Special (Pianos Demolished Phone 021 373 4472)" (Bill Hunt) (B) - 4:16
  3. "See My Baby Jive" (A) - 5:01
  4. "Bend Over Beethoven" - (Hugh McDowell) (B) - 4:42
  5. "Angel Fingers" (A) - 4:39
  6. "You Got The Jump On Me" - (Rick Price) (B) - 6:28
  7. "Rob Roy's Nightmare (A Bit More H.A.)" - (Mike Burney) (B) - 3:47
  8. "I Wish It Could Be Christmas Everyday" (A) - 4:48





(Não sei se o link que achei inclui os bônus, se não tiver, sugiro que procurem!)

domingo, 25 de dezembro de 2011

Kollektiv - Uma Discografia De Um Ano


Kollektiv - Kollektiv 1973

1. Tambo Zambo (11:49)
2. Baldrian (7:05)
3. Försterlied (1:49)
4. Gageg - Andante (5:05)
5. Gageg - Allegro (3:35)
6. Gageg - Pressluft (11:02)
Total time: 40:25


Kollektiv - "SWF-Sessions" (Vol.5) 1973

1. Tamboura (8:16)
2. Subo (8:20)
3. Mollzitter (14:19)
4. Baldrian (6:29)
5. Gageg (20:09)
Total Time: 57:33


Kollektiv - Live 1973

1. Rapunzel (8:06)
2. Subo (9:07)
3. Rambo Zambo (24:20)
4. Förster-Lied (1:53)
5. Gageg (excerpt) (12:44)
Total Time: 56:10



- Klaus Dapper / flute & saxophone
- Jürgen Havix / guitar & zither
- Jürgen (Jogi) Karpenkiel / bass
- Walemar (Waldo) Karpenkiel / drums



             Disponibilizo uma referencia incrível de krautrock: Em estilo e nível semelhantes a Embryo e Xhol Caravan, esses três álbuns do Kollektiv de 1973 consiste num grande exemplo do jazz-rock que a Alemanha produziu!




sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Max Bruch - Concerto para violino no. 1 em G menor, Op. 26



     Escutei pela primeira vez (com a devida atenção) esse concerto para violino de Bruch essa semana. E foi, já nesse primeiro contato, uma experiência completa (Isso supostamente diz tudo, mas seu conteúdo determinado é, na verdade, inexistente). Tanto faz: estava num momento sensível, e não estou disposto a descrever, analisar e fundamentar a experiência que tive com a musica. Espero simplesmente que também gostem do concerto, se assim suceder, o conteúdo do meu discurso estará, acredito, satisfatoriamente preenchido.

      Peguei o álbum do blog "O Ser da Musica", que, ademais, vale a pena conhecer. O concerto de Edward Elgar vai de brinde (não o conheço).

        http://oserdamusica.blogspot.com/

     Ademais, já que estamos falando de concertos para violino (inclusive de opus 61), escutem também o de Beethoven, que, coincidentemente, foi uma das primeiras obras que me verdadeiramente me comoveu. Abaixo está, do mesmo blog, várias versões do concerto.

        http://oserdamusica.blogspot.com/search?q=beethoven+61


sábado, 17 de dezembro de 2011

Coupla Prog - Death Is A Great Gambler 1972



        Apesar do álbum ter sido gravado em 1972 só foi editado e distribuído em 2002. Essa capa de extremo mal gosto é realmente incompreensível, mas a música é boa, nada impressionante ou inovadora, mas trata-se de uma som muito bem feito, que transparece consciência e equilíbrio. Na linha do Frumpy, com destaques para o órgão e orientações para o blues, fazem um belo prog alemão.



1. Chandra (6.30)

2. That's The Way It Goes (4.12)
3. Tochter Im Delirium - Daughter's Delirium (9.15)
4. Death Is A Great Gambler But If I Win, Finally I Can Die (18.34)
5. Your Time Has Come (4.25)
6. Season Of The Witch (13.47)



Total Time: 56:43



- Hubert Donauer / drums
- Rolf Peters / guitar, vocals
- Reiner Niketta / bass, organ, piano, vocals
- Wolfgang Schindhelm / organ, piano, vocals
- Reinhold Hirt / drums
- Walter Kümmich / guitar


domingo, 20 de novembro de 2011

I Giganti - Terra in Bocca (poesia di un delitto) 1971



1.Prima Parte (23:38)
2.Seconda Parte (23:03) 

Line-up / Musicians
- Giacomo "Mino" Di Martino / vocals and guitar
- Francesco "Checco" Marsella / vocals, keyboards, mellotron
- Sergio Di Martino / vocals, bass, guitar
- Enrico Maria Papes / vocals, drums, sound effects

Guest musicians:
- Ellade Bandini / drums
- Ares Tavolazzi / bass, guitar
- Vince Tempera / organ, piano
- Marcello Della Casa / guitars

sábado, 12 de novembro de 2011

Consciência Estética na Arte Contemporânea



Introdução

A necessidade eufórica de se definir arte é, certamente, sintomática. A atual produção artística se depara no interior de dimensões que não se encontravam reservadas à arte, e a exigência de uma elaboração teórica paralela a fim de reconhecer tais objetos enquanto obras de arte caracteriza de forma decisiva a experiência estética contemporânea. Além de estar naturalmente condenada a acompanhar e assimilar o movimento da produção artística, a estética se encontra, hoje, ainda determinada por uma segunda tarefa: legitimar o estatuto artístico das obras periféricas ao conceito de arte.
Entretanto, afirmações segundo as quais a arte ultrapassou as fronteiras de toda determinação possível são, ao contrário do seu conteúdo supostamente definitivo e universal, determinadas por uma mentalidade que se espanta demasiadamente com o presente e se torna incapaz de analisá-lo com clareza.
A superação de estruturas e ideais artísticos, cuja expressividade se encontra sempre restrita a um contexto, caracteriza toda a história da arte, e creio que o que hoje ocorre na arte não é radicalmente diferente do que sempre ocorreu. Talvez um aumento quantitativo desse movimento, decorrente das novidades técnicas do nosso século, do maior número de artistas concorrendo ao mesmo espaço, ou da aceleração do ritmo criativo sustentado pelos modos de produção do capitalismo, seja algo razoavelmente defensável. Mas, compreender a arte contemporânea como um estágio derradeiro da história que, ultrapassando todas as determinações e expectativas, escapa a toda definição, é um exagero característico de quem analisa sua própria época.
No domínio da teoria, creio que chegamos, realmente, num ponto limite: afirma-se, contando, ademais, com um grau elevado de concordância, que tudo pode ser arte. Mais do que isso é impossível afirmar. Mas a produção da arte acompanhou essa transposição ao infinito no nível teórico do conceito de arte? Certamente que não. Há um caminho desconhecido, cuja limitação da imaginação humana jamais permitirá que seja espiado antes de se tornar concreto, e que deve estar contido, de forma virtual, numa teoria estética.
Nesse sentido, acredito que o único modo de, reservando um lugar para a imprevisibilidade da arte contemporânea, explicar a realidade da arte se dá por meio da relação entre o sujeito e a obra de arte. Investigar o modo pelo qual nos relacionamos com o objeto artístico, independentemente da sua constituição física, social e semântica, é a melhor maneira de pensarmos o conceito de arte, revelando aquilo que lhe é particular da sua experiência, sem, no entanto, restringir o seu espaço criativo.


Desenvolvimento

Como se define um conceito (se se quer bem realizar alguma tarefa é essencial que se pense na constituição mesma do seu realizar)? Tradicionalmente, encontrando propriedades definitórias, isto é, identificando certo número de propriedades essenciais que um objeto deve necessariamente possuir. Posteriormente, podemos ainda considerar um método ligeiramente distinto, segundo o qual, a partir de um conjunto dado de objetos, buscar que características estão presentes em cada um desses objetos e que, simultaneamente, não se encontra em nenhum objeto que não pertença ao conjunto. Indo adiante, podemos ainda dispensar completamente a procura por propriedades e eleger o próprio conjunto como a definição do conceito, ou seja, a mera aplicação do conceito e o conjunto de objetos aos quais, neste uso, constituem sua referência, consiste precisamente na sua definição.
Não creio que tenha alguma relevância avaliar cada um dos métodos de definição segundo um juízo de valor, cada um tem uma função específica e, de acordo com suas vantagens e desvantagens características, se tornam útil em alguns casos e inúteis em outros. Para as ciências naturais, cujo objeto é dado e a relação pela qual se apodera deste objeto é puramente descritiva, identificar propriedades definitórias, por mais epistemologicamente questionável e metafisicamente antiquado que pareça, é o modo mais eficaz de compreender e organizar o domínio da realidade que lhe é próprio. No entanto, já para objetos artificiais e, ademais, constantemente em modificação, a tentativa de encontrar tais propriedades é completamente inútil, até prejudicial, já que ao invés de compreender a natureza flexível de seu objeto o imobiliza dentro de seus limites semânticos.
O conceito de arte, portanto, só pode ser definido através da mera exposição do seu conjunto, já que encontrar propriedades que lhe sejam próprias se mostrou definitivamente impossível em pleno século XXI. O privilégio disso é claro: o conceito de arte pode ser modificado à velocidade em que ela ganha novos produtos. Sem uma propriedade através da qual se avalia previamente a inclusão de um determinado objeto ao domínio do conceito de arte, por princípio, qualquer objeto tem o direito de ser arte. Ademais, a arbitrariedade desse processo de definição se apresenta inteiramente homomórfico ao próprio processo criativo da arte.
Semanticamente, é o método mais seguro e objetivo, satisfaz exigências epistemológicas razoavelmente rigorosas já que a capacidade de uma sentença ser verdadeira ou falsa, e o conjunto formado por este dado, é empiricamente detectável. Mas que informação relevante uma definição assim nos transmite? Na medida em que o conceito de arte deve, ao menos em potência, ser tão grande quanto à própria noção problemática de ser, pois a máxima “tudo pode ser arte” consolidou-se de tal forma na arte contemporânea que nenhuma teoria estética tem mais o direito de contrariá-la, o conceito de arte perde todo seu conteúdo determinado. A lei da relação inversamente proporcional entre o conteúdo de um conceito e a extensão de seu domínio nos obriga a repensar a importância de definir arte dessa maneira.
Se a definição de arte aqui se encerra, isto é, se o limite da possibilidade de definição do conceito de arte consiste na mera exibição de seu domínio, que aponta para a totalidade do ser, ela é completamente inútil. Há, no entanto, no próprio desenvolvimento da definição, algo ainda mais esclarecedor. O critério, mesmo empírico, que estabelecemos anteriormente para definir o conceito de arte, segundo o qual “tudo pode ser arte”, esconde uma idéia extremamente importante que se encontra precisamente no termo “pode”. Me parece que a contingência expressa pelo verbo “poder” caracteriza de forma mais significativa o conceito de arte que o próprio “tudo”, ao qual primeiramente direcionamos a atenção.
O fato de que a consideração de um determinado objeto enquanto obra de arte depende de algo exterior, isto é, que as suas determinações intrínsecas não são suficientes para qualificá-lo segundo seu caráter artístico, reorienta a investigação acerca do conceito de arte para um domínio inteiramente diferente.
Usualmente se coloca a possibilidade de, deslocando um objeto qualquer do seu contexto originário, no qual nossa percepção se encontra inteiramente preenchida pelas determinações utilitárias com que nos relacionamos com a realidade no exercício normal da vida, convertê-lo numa obra de arte. Isso a experiência mesmo nos comprova, o século XX já explorou exaustivamente essa possibilidade. Mas será o contrário também verdadeiro? Será uma “autêntica” obra de arte vulnerável à desautorização de seu valor artístico? Bem, o legado histórico de um objeto é decisivo para seu reconhecimento enquanto obra de arte, de modo que retirada sua história seu caráter artístico também se encontra ameaçado. Analogamente ao radical esquecimento, a reprovação do contexto histórico no qual as obras nazistas foram produzidas, e sua conseqüente carga semântica negativa, provocam também uma grande resistência na exposição e apreciação dessas obras. Embora os dados factuais expressem uma tendência contrária, na qual objetos ordinários, pelo mero fato de conter um percurso histórico, são naturalmente aceitos como obra de arte, independentemente de sua função originária e seu valor estético, a possibilidade, embora remota, de uma obra de arte perder completamente seu reconhecimento artístico existe.
Basta, portanto, que se percam as referências que regem o modo pelo qual devemos apreender um determinado objeto para seu valor artístico se tornar suspenso. Pelo menos até que alguém nos diga que se trata de uma obra de arte. A afirmação “isto é arte!”, de certo modo tautológica, até mesmo imperativa, estabelece uma espécie de manual de instruções que orienta e determina a percepção. Sua verbalização é, no entanto, irrelevante, o mesmo conteúdo aparece também na dimensão meramente prática quando, por exemplo, usamos um objeto com fins decorativos, quando produzimos ou nos apoderamos de objetos que julgamos ostentar certa beleza, ou, obviamente, quando levamos um objeto para dentro de um museu ou uma galeria. Todo o domínio de indivíduos envolvidos no mundo da arte contribui no reconhecimento do que é arte, isto é, na emissão da afirmação, verbalmente ou não, “isto é arte!”. Desde o domínio da produção artística à ordem da recepção, com todos os seus complexos campos intermediários, possuem igual legitimidade nesse juízo.
Mas em que consiste exatamente essas “instruções”? Essa é a única questão que realmente interessa para a definição de arte, isto é, investigar qual é o modo pelo qual apreendemos um objeto quando tal recepção se encontra determinada pela estrutura espectador/obra de arte. Sem a ontologia subjetiva que Kant dispunha para analisar o juízo de gosto, a determinação da relação entre o sujeito e a obra de arte se torna certamente menos objetivável, mas sinto-me plenamente seguro quanto à determinação de um aspecto: ela encontra-se na ordem da percepção.
A fim de caracterizarmos o domínio da percepção e a forma da experiência que temos com a arte, que consiste no núcleo da experiência estética, podemos recorrer ao que já foi, de certo modo, consolidado como o sentido geral de “experiência estética”: a ausência de um conceito de fim, a suspensão das determinações funcionais e utilitárias, a desconsideração do conteúdo informativo e exclusivamente racional, o caráter contemplativo, o distanciamento perante a existência do objeto, a apreensão enquanto fim em si mesmo, a integral imersão na realidade própria da obra, etc.
Por um lado, a arte contemporânea tenta, assim como grande parte da literatura acerca da arte, contrariar essa “pureza” estética, que acredito estar na essência da experiência com a arte. A própria noção de arte conceitual, cujo aparecimento ocupa um lugar central na arte contemporânea, parece contradizer em sua própria formulação a idéia de que a forma, a aparência, e, conseqüentemente, o domínio da percepção, seja prioridade na arte. A atribuição de significado a um objeto, sua recém-adquirida carga semântica, o que reivindica do espectador um papel intelectual ativo, superaria, nesse sentido, a ordem perceptiva pelo qual apreendemos a obra de arte.
Não creio, no entanto, que esta tese seja eficaz em acomodar e ordenar uma parte significativa da experiência que temos com a arte. Sua validade se restringe a uma certo domínio dos produtos artísticos, aqueles que oferecem uma clara abertura interpretativa. Alem disso, o que penso mais revelar a fragilidade desta teoria, é o fato de se referir a aspectos da experiência cuja importância para a arte é mínima, identifica uma fragmento da experiência, que de fato está ali, mas que não diz respeito à particularidade da relação espectador/obra de arte.
Identificar um significado numa obra de arte resume-se a um esforço de leitura que, embora legitimo, poderia ter como ponto de partida qualquer outro objeto. Um texto de caráter estritamente filosófico, sem nenhum interesse estético, poderia originar e construir pensamentos cujo conteúdo seja análogo, por exemplo, ao venerado mictório de Duchamp. Obviamente, o texto e a “escultura” não expressam este pensamento da mesma maneira. Cada um, segundo sua natureza, seu meio, sua linguagem impõe suas particularidades. O texto filosófico privilegia a clareza, a profundidade, a fundamentação, etc. A linguagem pela qual a obra de Duchamp se concretiza não dispõe de nenhuma dessas características, em oposição, a subjectividade permitida pelo caráter interpretativo dessa relação e a crueza e o impacto da imediaticidade da experiência estética constituem algumas vantagens exclusivas da linguagem artística.
Obviamente, para fins específicos, como a tentativa de comunicar algo cujo conteúdo se encontra censurado dentro de um sistema político repressor, para explorar aspectos da subjetividade humana que escapa ao discurso científico, ou transmitir uma mensagem cujo choque e agressividade sejam uma exigência intrínseca ao próprio conteúdo, é perfeitamente possível se defender a superioridade da arte como meio de informação e conhecimento. No entanto, acho difícil negar que um texto livre de exigências estéticas tenha maior capacidade de comunicar um conteúdo de forma íntegra, rigorosa e objetiva. Seria, portanto, absurdo supor que o valor da arte esteja no conteúdo que expressa, no conceito ao qual foi destinado a representar. Contrariamente, penso que é pelo modo como ela expressa algo, independentemente de que conteúdo seja, que se fundamenta o valor da obra de arte. O modo como um objeto expressa algo, o seu meio, a sua forma, nos obriga a reorientar o discurso estético para sua própria linguagem, e, mais uma vez, recuperamos a caráter perceptivo da experiência com a arte.
No interior dessa tese, a arte contemporânea ganha uma nova imagem. A arte conceitual perde, é verdade, parte de seu interesse artístico. Isso não significa, no entanto, um manifesto contra a importância dessas obras, mas uma mera relocalização de seu valor. De fato, sempre achei que o mictório de Duchamp seja mais filosofia da arte do que propriamente obras de arte, isto é, que seu valor se encontre menos no domínio percepção do que como meio de comunicação de uma teoria.
A apropriação de objetos cujo valor artístico era antes inexistente, ou imperceptível, possui, portanto, por um lado, (1) um valor filosófico e teórico de redefinição e ampliação do conceito de arte, que acredito ser, ademais, superior a alguns textos filosóficos cuja obscuridade e hermeticidade lhe conferem mais interesse poético que teórico; por outro lado, (2) um valor propriamente artístico, originário da percepção do objeto. Nesse sentido, o expressionismo abstrato, e a arte moderna em geral, encontram maior refúgio no interior dessa teoria, na medida em que sua atividade, auto-reflexiva, consiste em explorar e reinventar uma realidade própria que revela a particularidade da linguagem pictórica.
No entanto, creio que a arte contemporânea em sua totalidade (não me refiro, obviamente, à totalidade das obras, mas a multiplicidade de movimentos e formas de expressão) encontra um espaço acolhedor no interior desta idéia. O caráter híbrido das obras, constantemente contrariando o isolamento das linguagens artísticas, a inclusão democrática da atividade de sentidos desvalorizados (o olfacto e o tacto), a livre apropriação de novos meios técnicos, o que fornece à arte uma materialidade cada vez mais vasta, são algumas novidades importantíssimas da arte contemporânea que habitam o domínio da percepção.
O mictório de Duchamp, no entanto, se encontra ameaçado, seu valor estético é, na verdade, questionável e vulnerável. De fato, penso que, para o domínio da arte, sua obra tem uma importância prioritariamente indireta. Na medida em que desempenha um papel fundamental na história da arte, abre um espaço inteiramente novo e rico para a criação artística.
No entanto, as colagens de Picasso, por exemplo, que exercem uma análoga apropriação de objetos (tickets e recortes de jornais, igualmente desprezados dentro das suas funções originárias), conseguem compô-las de tal modo que um interesse estético também determine parte da experiência com a obra. Obviamente, a extensão teórica das colagens de Picasso não atinge, como a obra de Duchamp, questões acerca da originalidade e da autenticidade, cujo questionamento se mostrou fundamental para a arte contemporânea. Mas isso consiste, como tentei expor, num outra categoria de valor.
Questões acerca dos limites do conceito de arte já não motivam decisivamente a produção artística contemporânea, a possibilidade de tudo ser arte já consolidou-se e reafirmar isso não nutri mais interesse artístico. Mas os problemas teóricos acerca da legalização irrestrita do ato de apropriar-se de um objeto só puderam ser colocas e explorar a fundo pelo contexto fornecido com a arte contemporânea. Embora já estivessem presentes na arte desde muito antes, a apropriação parece continuar a provocar questões relevantes para a arte.
A apropriação surge no centro da discussão acerca da definição de arte, já que consiste justamente no ato de transitar objetos pela fronteiras do conceito de arte. Na Pop Art, no entanto, a apropriação incorpora um significado mais amplo: dois conceitos até então fundamentais à concepção de arte se encontram ameaçados. Em primeiro lugar, o conceito de autoria deixa de determinar a produção artística: não é mais necessária destreza técnica na fabricação da obra e nem mesmo que ele seja feito pelo artista. A produção serial e automática que rege a indústria, e o mundo contemporâneo em geral, pode ser também reivindicada no fazer artístico. Em segundo lugar, o conceito de autenticidade é abandonado. Num mundo em que a existência serial das coisas sufocou toda singularidade e individualidade, não faz mais sentido a arte insistir em valorizar e originalidade.
Podemos destacar ainda uma terceira possibilidade de problemática levantada pela apropriação na arte contemporânea. Esta, talvez, ainda mais fundamental, tanto por ter sua origem na arte contemporânea, quanto por levantar questões teóricas que dizem respeito ao domínio da percepção. Refiro-me ao conceito de objeto como resultado da atividade artística. A arte contemporânea levou essa questão às ultimas conseqüências: dispensando completamente a fabricação da obra, os meros planos, a idéia, passou a ocupar um “espaço” no museu.
Mas não precisamos ir tão longe por agora. O modo como o novo realismo, com artistas como, por exemplo, Raymond Hains, Jean Tinguely e Arman, desempenha sua atividade artística nos permite colocar a questão por outra perspectiva: não por abandonar a produção do objeto, mas ampliar a noção dos limites deste. Penso que o grande mérito do novo realismo se encontra precisamente na capacidade de ampliar a experiência estética para além do contato direto com a obra.
O ato de levar a realidade para o domínio da arte, transfigurando a banalidade do modo como lidamos com os objetos no mundo numa experiência estética, faz surgir um movimento de direção contrária, que vai da arte para a realidade: a relação que temos com realidade também é alterada pela arte. A obra de arte não mais se encerra na unidade de sua superfície, mas, ultrapassando seus próprios limites físicos, se estende para todo o mundo quotidiano. Uma parte da realidade é introduzida na arte, mas, simultaneamente, a arte também se inscreve na realidade. É nesse sentido que o novo realismo nos permite pensar na noção de extensão da obra de arte, a noção de objeto como encerrando em si mesmo o resultado do fazer artístico.
Isso tudo determina o domínio da percepção. A obra mesma permanece intacta, presa nos limites de sua materialidade. É unicamente pela modificação do modo pelo qual nos relacionamos com os objetos que permite a obra de arte estender sua existência para além de sua materialidade.